
Se a obra da nossa santificação nos oferece dificuldades tão insuperáveis na aparência, é porque não temos dela uma ideia exata. De fato, a santidade reduz-se toda a uma só coisa, — a fidelidade à vontade de Deus. Ora esta fidelidade está ao alcance de todos, tanto na sua prática ativa como no seu exercício passivo.
A prática ativa da fidelidade consiste no cumprimento das obrigações que nos são impostas, quer pelas leis gerais de Deus e da Igreja, quer pelo estado particular que abraçamos. E o exercício passivo consiste na aceitação amorosa de tudo o que Deus nos envia a cada instante.
Destas duas partes da santidade, qual é a que está acima das nossas forças? Não é a fidelidade ativa, pois as obrigações que ela nos impõe cessam de ser obrigações desde que o seu cumprimento excede realmente as nossas forças. O estado de saúde em que vos encontrais não vos permite ir assistir a missa? Não estais obrigados a ouvi-la. E o mesmo se diga de todas as obrigações positivas, isto é daquelas que nos prescrevem o cumprimento de algum ato. Só as que nos proíbem de fazer coisas que são más em si mesmas, é que não sofrem exceção alguma, pois nunca é permitido fazer o mal.
Haverá, portanto coisa mais fácil, e mais razoável?... Que desculpa é que poderemos alegar? Ora, é precisamente isso o que Deus exige da alma, no trabalho da sua santificação. Exige-o aos grandes e aos pequenos, aos fortes e aos fracos, numa palavra, a todos, em todo o tempo e em todo o lugar. Por conseguinte, é muito verdade que não exige da nossa parte senão o que é possível e fácil; pois basta possuir este fundo tão simples, para chegar a uma santidade muito elevada.
Se para além dos mandamentos nos aponta os conselhos, como alvo mais perfeito para o qual havemos de tender, tem contudo o cuidado de acomodar a prática desses conselhos a nossa situação e ao nosso caráter. Como sinal principal da nossa vocação para os seguir, dá-nos os auxílios da graça que nos facilitam a sua prática. Nem chama a ninguém senão na medida das suas forças e no sentido das suas aptidões. Mais uma vez ainda: poderia imaginar-se alguma coisa mais razoável?
Ó vós todos que tendeis à perfeição e vos sentis tentados de desânimo à vista do que ledes nas vidas dos santos e do que certos livros de piedade vos prescrevem; ó almas que vos afligis a vós mesmas com as idéias terríveis que tendes da perfeição; é para vossa consolação que Deus quer que eu escreva estas palavras.
Aprendei pois o que pareceis ignorar. Este Deus de bondade tornou fáceis de adquirir todas as coisas necessárias e comuns na ordem natural, como o ar, a água e a terra. Nada mais necessário do que a respiração, o sono e o alimento; mas para também mais fácil. O amor e a fidelidade não são menos necessários na ordem sobrenatural; por isso a dificuldade em os alcançar não deve ser tão grande como no-la representamos.

Reparai na nossa vida de que é que se compõe? De uma série de ações de bem pouca monta. Ora destas coisas de tão mesquinha importância é que Deus se digna contentar-Se. Essa é a parte que toca à alma no trabalho da perfeição. E para que não pudéssemos ter disso dúvida, quis explicar-no-lo bem claramente: “Temei a Deus e observai os seus mandamentos; isso é convosco”. Quer dizer: eis tudo o que o homem deve fazer pela sua parte, eis em que consiste a sua fidelidade ativa. Cumpra o homem o que lhe toca, e Deus fará o resto. A graça divina reserva para si mesma a realização de maravilhas: que ultrapassam toda a inteligência do homem. Porque nem os ouvidos ouviram, nem os olhos viram, nem o coração sentiu o que Deus concebe na Sua idéia, resolve na Sua vontade e executa pelo Seu poder, nas almas que a Ele Se abandonam.
A parte passiva da santidade é ainda muito mais fácil, pois não consiste senão em aceitar o que na grande maioria dos casos não se pode evitar; e em sofrer com amor, isto é com suavidade e consolação, o que tantas vezes se suporta com aborrecimento e desgosto.
Mais uma vez ainda: eis a santidade toda inteira. Eis o grão de mostarda, cujos frutos não recolhemos porque não sabemos reconhecê-lo na sua insignificância. Eis a dracma do Evangelho, o tesouro que não encontramos porque o supomos muito afastado para o ir buscar.
Nem me pergunteis qual é o segredo, de encontrar este tesouro. Porque verdadeiramente não há segredo. Este tesouro está em toda a parte, e a todos se oferece em todo o lugar e em todo o tempo. As criaturas amigas e inimigas dão-no-lo a mãos cheias e fazem-no correr pelas faculdades do nosso corpo e alma, até ao mais fundo do nosso coração. Basta abrir a boca, e ficará repleta.
A ação divina inunda o universo, penetra todas as criaturas, sobrenada acima de todas, está em toda a parte onde elas estão; adianta-se a elas, acompanha-as, segue-as; não temos senão que deixar-nos levar pelas suas ondas.
Prouvera a Deus que os reis e seus ministros, os príncipes da Igreja e do mundo, os sacerdotes, os soldados, os patrões e os operários, numa palavra todos os homens, conhecessem quanto é fácil atingir uma santidade eminente. Para eles não se trata senão de cumprir os simples deveres do cristianismo e do seu estado, e abraçar com submissão as cruzes que lhes estão inerentes, e submeter-se com fé de amor à vontade da Providência, em tudo o que se lhes apresenta para fazer ou sofrer, sem mesmo o buscarem. Esta espiritualidade foi a que santificou os profetas, muito antes de que houvesse tantas regras e tantos mestres. É a espiritualidade de todas as idades e de todos os estados, que certamente não podem ser santificados de maneira mais elevada, mais extraordinária e mais ao nosso alcance, do que realizando simplesmente o que Deus, soberano diretor das almas, lhes dá em cada momento a fazer ou sofrer.
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Maria Sempre!
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FONTE: CAUSSADE, Padre Jean Pierre de. O abandono à providência divina. Livro 1, Cap. 3. Ed. Cruz Braga, 1956. pg. 23-29.
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Sobre a obra: Foi editado pela primeira vez em 1861, pelo conhecido teólogo P. Henrique Ramière, S.J., e acolhido com extraordinária aceitação. Reeditou-se logo em 1862 e foi preciso fazer novas tiragens em 1863 e 1864. A 5a edição saiu em 1867, acrescentada com 128 cartas do P. Caussade e um «Discurso do editor sobre os fundamentos e a verdadeira natureza da virtude do abandono, para explicar e defender a doutrina do P. Caussade». Em edições posteriores foram-se ajuntando algumas cartas e avisos espirituais. Sob esta forma a obra do P. Caussade continuou a conhecer o mesmo fervoroso acolhimento, tornando-se «clássica» nesta matéria. Em 1928 aparecia a 21a edição, e em 1930 os exemplares espalhados elevavam-se a perto de 80.000.Para a versão portuguesa, servimo-nos da 25a edição abreviada (Paris,1952), na qual não aparecem as cartas nem outros avisos espirituais do P. Caussade, mas se conserva o «Discurso» do editor e se dão em Apêndice alguns pequenos tratados de Surin e de Bossuet e alguns atos de abandono em forma de orações. Na nossa edição pareceu-nos desnecessário conservar o «Discurso», e do Apêndice guardamos apenas o ato de abandono atribuído ao restaurador da Companhia de Jesus na Itália, S. José Pignatelli (1737-1811). Este ato era recitado por Madame Elisabeth durante o seu cativeiro no Templo e parece ser da autoria do P. Caussade.
★Oxalá este livrinho, «obra genial», contendo «muitas páginas duma sublimidade, duma magnificência de vistas e duma profundeza de sentimentos que arrebatam os que sabem compreendê- las» (P. Hilaire, diretor das Damas de Nazaré), encontre na nossa língua um êxito semelhante ao que tem tido na sua língua original.
Lisboa, 25 de Agosto de 1955.
A. C.
Amém! Obrigada! Sempre!
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