terça-feira, 7 de agosto de 2018

O SENTIDO MÍSTICO DO BEIJO



O grande Salomão descreve com feição deliciosamente admirável os amores do Salvador com a alma devota, nessa divina obra que, pela sua excelente suavidade, chamamos o Cântico dos Cânticos. E, para nos elevar mais docemente à consideração desse amor espiritual que se exerce entre Deus e nós, pela correspondência dos movimentos de nossos corações com as inspirações de sua divina majestade, ele emprega uma perpétua representação dos amores de um casto pastor com uma pudica pastora. Ora, fazendo falar em primeiro a esposa, como á maneira de uma certa surpresa de amor, fá-la exprimir este anelo: Beije-me ele com um beijo de sua boca! (Cânt 1, 1). Vedes, Teótimo, como a alma, na pessoa dessa pastora, pelo primeiro anelo que exprime não pretende senão uma casta união com seu esposo, como que protestando ser esse o único fim a que aspira e pelo qual respira; por quanto, pergunto-vos, que outra coisa quer dizer esse primeiro suspiro: Beije-me ele com um beijo da sua boca?

Em todos os tempos, como por instinto natural, o beijo foi empregado para representar o amor perfeito, isto é, a união dos corações, e não sem causa. Nos olhos, nas sobrancelhas, na fronte e em todo o resto do rosto nós fazemos sair e aparecer as nossas paixões e os movimentos que nossas almas têm comuns com os animais. Conhece-se o homem pelo rosto (Ecle 29, 26), diz a Escritura; Aristóteles, dando a razão pela qual de ordinário se pinta somente a face dos grandes homens, diz: É porque o rosto mostra que somos.

Mas, no entanto, nem os nossos discursos nem os pensamentos que procedem da porção espiritual de nossas almas a que chamamos razão e pela qual somos diferentes dos animais, nós não os derramamos senão pelas nossas palavras, e por conseguinte por meio da boca. De tal arte que entornar sua alma e derramar seu coração outra coisa não é senão falar; derramai diante de Deus vossos corações (Sl 61, 9), diz o Salmista, isto é, exprimi e pronunciai por palavras os afetos de vosso coração. E a devota mãe de Samuel, pronunciando suas preces, embora tão suavemente que a custo se lhe via o movimento dos lábios, diz: Derramei minha alma diante de Deus. Destarte, a gente aplica uma boca à outra quando se beija, para testemunhar  que quereria verter as almas uma dentro da outra reciprocamente, para as unir de uma união perfeita; e por isso que, em todo tempo e entre os mais santos homens do mundo, o beijo tem sido o sinal do amor e dileção, por isso também foi ele empregado universalmente entre todos os primeiros cristãos, como o grande São Paulo testemunha quando diz aos Romanos e aos Coríntios: Saudai-vos mutuamente uns aos outros pelo santo ósculo; e, como vários testemunham, Judas na prisão de Nosso Senhor empregou o beijo para o fazer conhecer, porque esse divino Salvador beijava comumente seus discípulos quando os encontrava; e não somente seus discípulo quando os encontrava; e não somente seus discípulos, mas também as criancinhas, que ele tomava amorosamente nos braços, como fez àquela por cuja comparação convidou tão solenemente seus discípulos à caridade do próximo; a qual vários pensam ter sido São Marçal, como o bispo Jansênio o refere.[1]


Assim, pois sendo o beijo o sinal vivo da união dos corações, a esposa, que em todas as diligências só pretende é estar unida com o seu bem-amado, diz:  Beije-me ele com um beijo de sua boca; como se exclamasse: Tantos suspiros e dardos inflamados, que meu amor lança incessantemente, não impetrarão jamais aquilo que minha alma deseja? Eu corro; oh! Então nunca alcançarei o prêmio pelo qual me esforço, que é estar unida coração a coração, espírito a espírito, com meu Deus, meu esposo e minha vida? Quando será que derramarei minha alma, e que, assim, ditosamente unida, viveremos inseparáveis?

Quando o espírito divino quer exprimir um amor perfeito, quase sempre emprega as palavras união e conjunção. Na multidão dos crentes, diz São Lucas, não havia senão um coração e uma alma (At 4, 32) [...]




[1] Jansênio, bispo de Gand, no seu comentário sobre o Evangelho de São Marcos.

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Maria Sempre!
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FONTE: SALES, São Francisco de. Tratado do amor de Deus. Petrópolis: Vozes, 1955; p.52-55.

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Sobre a obra: A presente versão portuguesa do Tratado do Amor de Deus de S. Francisco de Sales é feita sobre a tradução publicada em 1908 no Porto, cuidadosamente revista e cotejada com a edição francesa de 1894 (Annecy), a qual, por sua vez, reproduz o texto da edição princeps de 1616, a única de que o Autor tem a responsabilidade. O original autógrafo desta Obra encontra-se disseminado por cadernos e folhas soltas manuscritas, que acusam numerosas variantes, desde os manuscritos primitivos até à redação definitiva. Isto explica uma ou outra divergência que possa ser notada entre a presente versão e o texto francês, que porventura venha a cair nas mãos dos leitores.


Pe. Augusto Durão Alves




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